Natal na casa dos leprosos

Títulos: Natal na casa dos leprosos: contos

Autor: David Gonçalves

Editora: Dois Por Quatro

Ano: 2022

ISBN: 978-65-88812-41-9

126 páginas

Formato: 14 x 21 cm

SUMÁRIO

1   Entrem e sejam bem-vindos
2   A princesa e o anjo negro 
3   Abaixo de qualquer coisa
4   O macaco-prego que ria
5   Os estranhos caminhos de Samanta
6   A breve história da hóspede desconhecida
7   Natal na casa dos leprosos

Entrem e sejam bem-vindos

[...]
Perscrutei o relógio. Meia-noite. Foi quando, sorrateiramente, entrou um homem gordo, alto, de ombros largos. Achegou-se aos caixões e quedou-se por vários minutos. Depois, da mesma forma que havia entrado, foi-se embora.
— Quem era? – perguntei a um velho que estava próximo. – Possível que seja parente...
— O pastor Lucas, da Igreja do Reino.
— Esteve antes por aqui? 
— Oh, não, é a primeira vez.
Calei-me.
Em seguida, entrou outro homem. Era baixo, carrancudo e mirava o chão, enquanto dava passadas miúdas.
— É o padre... 
— Por que não veio antes? Ocupação? Só agora, por volta da meia-noite? Deve ter algum motivo para isso.
O padre também parou pouco. Fez uma contrição rápida e saiu. Lá fora, havia começado a chover e os relâmpagos riscavam a noite. Chuva fina, levemente oblíqua. O ar, dentro da capela, continuava abafado.
Outro desconhecido entrou. Também era pastor. Até parece que eles haviam combinado o horário: todos visitariam os corpos depois da meia-noite. Parou três a quatro minutos e se foi.
— Esse desfilar de celebridades... O que pode significar tudo isso, enfim? Por onde devo começar as investigações? – o álcool ia perdendo o seu efeito e minha cabeça começava a clarear.
Mais outro compareceu. Vestia-se de preto. Postou-se na frente dos caixões e ficou por ali meneando a cabeça grisalha. O cheiro adocicado de flores murchas deixava o ar mais abafado.
Soube depois que era o mestre da maçonaria local. Havia, entre as coroas de flores, uma com o nome da entidade que representava. Não conversou, muito menos levantou os olhos. 
— Arre, o que essa gente vem fazer num velório a estas horas? Será que a bondade da família morta os espanta?
O resto da noite corria tranquila. Eu poderia até tirar uns cochilos breves. Não tinha vontade de ir ao meu quarto de pensão. Ultimamente, uma insônia cruel me abatia e me triturava durante a madrugada. Só conseguia dormir depois das cinco horas, quando o trem passava nos arredores de Quadrínculo. 
— Esse caso não tem solução. Os mortos não falam. Os malfeitores estão satisfeitos. Não há testemunhas.
Mas, de repente, um bando de jornalistas, molhados de chuva, entrou na capela. Fotografavam, filmavam, escreviam. Uma repórter transmitia ao vivo para uma rede de TV. Dizia, a voz sonora:
— Estas pessoas só queriam fazer o bem e foram cruelmente assassinadas com golpes de facão e de foices. O que elas tinham na entrada de sua casa? Este letreiro – a moça estendia uma faixa de papel branco, amarrotado – “Donde quer que venham, entrem e sejam bem-vindos”. 
Aí, eu pensei: “Pronto! Acabou-se meu sossego”. O caso tomaria proporções gigantescas. Estava, sem querer, no olho do furacão.
[...]